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Quem matou as peruas?

ford taunus wagon
Curiosidades

Quem matou as peruas?

ford taunus wagon

Se você tem mais de 30 anos de idade, tem grandes chances de ter passado sua infância dentro de uma perua. Fosse uma Kombi, uma Caravan, uma Parati ou uma Belina, elas eram o veículo escolhido por muitas famílias para passear e levar muita bagagem. A realidade hoje é outra e praticamente não há mais peruas zero quilômetro disponíveis no mercado brasileiro. Nas conversas de bar e internet ouve-se muito o lamento dos entusiastas dizendo que “infelizmente o brasileiro não gosta mais de peruas”. Será mesmo que de repente as peruas ficaram feias e sem graça para a maiorias dos compradores de carros? Ou haveria algum outro motivo para que elas fossem vendendo cada vez menos, até que se chegasse à situação atual em que quase não há mais modelos disponíveis? Existe um conceito de microeconomia chamado elasticidade dos preços. De maneira bem resumida, é uma relação entre o quanto um determinado aumento no preço de um produto afeta negativamente as suas vendas. No limite, um aumento muito grande no preço pode inviabilizar a venda do produto, caso não seja um bem necessário e possa ser substituído por outro produto. É o caso das peruas: exceto em casos específicos, carros não são bens necessários à vida humana; além disso, peruas podem ser substituídas por outros tipos de veículos, ainda que não se obtenham os mesmos atributos.

Dito tudo isso, é importante destacar que do ponto de vista de custos de produção, fabricar uma perua custa marginalmente mais que sua versão hatch. Isso significa que na hora de determinar o preço de uma perua a fábrica tem liberdade para escolher o posicionamento do modelo no mercado. Ela pode precificar a perua acrescentando apenas a diferença exata de custo em relação ao hatch, que é muito pequena, ou pode vender a perua muito mais caro que suas versões hatch ou sedan, se o departamento de marketing julgar que o consumidor atribui a ela uma utilidade muito grande que compense essa diferença de preço. Existe uma terceira possibilidade também, como a diferença de custo de produção é pequena, caso a fábrica queira alavancar as vendas de uma perua seu preço pode ser até menor que o da versão hatch, sendo a diferença absorvida pela margem de lucro.

Os preços

Com essa questão dos preços em mente, foram elaborados dois gráficos contendo a diferença de preço entre a perua e seu hatch equivalente ao longo do tempo. Ou seja, quão mais cara era a perua em relação à sua versão hatch. Os preços foram retirados das tabelas publicadas pela revista Quatro Rodas. Primeiro a Weekend em relação ao Palio:

palio vs weekend

Observa-se que a Weekend sempre foi razoavelmente mais cara que sua versão hatch, mesmo quando ainda se tratava da Elba e do Uno. Em novembro de 1995 uma Elba custava 13% mais caro que um Uno. Essa diferença foi aumentando para 15%, 20%, 23% ao longo dos anos, diminuiu em 2015 para 15% até chegar ao último ano da Weekend, quando ela custava 25% mais caro que um Argo, um veículo bem mais moderno.

Agora a evolução de outro modelo, a Parati:

gol vs parati

A evolução da diferença do preço da Parati em relação ao Gol é ainda mais interessante. De uma diferença irrisória de 2% em 1995, a Parati terminou seus dias em 2013 custando significativos 25% a mais que o Gol, este já na versão G5.

Conforme abordado no início do texto, normalmente aumentos de preços levam à queda de vendas. Claro que na economia real existem a inflação, aumentos de custos e movimentos de mercado, por isso mesmo todo ano a média geral de preços dos veículos aumenta. Mas os gráficos parecem mostrar que as peruas sofreram um aumento de preços proporcionalmente muito maior que outros tipos de veículos, ou ao menos que seus hatches equivalentes. Analisar a trajetória da Weekend e da Parati é interessante porque são modelos que foram fabricados por muitos anos. Mas a título de informação, vejamos outros modelos em novembro de 2000:

Por outro lado podemos comparar dois outros modelos após 2010, quando as peruas já iniciavam seu processo de agonia:

A diferença muito grande de preço das peruas em relação ao seu equivalente com outra carroceria talvez explique em parte suas vendas cada vez menores. Ou talvez não explique nada. Pode ser que as peruas tenham se tornado um tipo de veículo tão indesejado, que por mais baixos que fossem seus preços ainda assim elas venderiam pouco. Nesse sentido é interessante observar a trajetória de vendas da Mégane GT em função do seu preço. A Mégane GT iniciou suas vendas no Brasil em 2006 e durou até 2013, ano em que foram emplacadas apenas 195 unidades que estavam em estoque. Até 2011 havia versões com motor 2.0 e 1.6 e diferentes níveis de acabamento, até que nesse ano a Renault passou a disponibilizar apenas a versão Dynamique 1.6, com câmbio manual e recheada de equipamentos. Para fazer a comparação de preços será utilizada apenas a versão Dynamique 1.6. Os números de emplacamentos foram obtidos no site da Fenabrave, e os preços são das tabelas publicadas pela revista Quatro Rodas:

renault megane gt precos megane gt

Analisando os emplacamentos a partir de 2007, ainda que a Renault tenha reduzido pouco a pouco o preço em 2008, 2009 e 2010, foi em 2011 que a linha passou a ter uma única versão e o preço sofreu uma drástica redução de quase 10 mil reais (a título de comparação, em 2012 a Mégane GT custava R$ 47.860,00, um Golf 1.6 custava R$ 49.197,00 e um Focus 1.6 GL custava R$ 49.110,00). O impacto nas vendas não foi menos que explosivo, sem risco de exagero. Um aumento de vendas de 243% de um ano para outro, ainda por cima com redução da linha para uma única versão, é um resultado dos sonhos para quaisquer departamentos comercial e de marketing de qualquer empresa. O número de emplacamentos manteve-se no mesmo (alto) nível em 2012, e talvez se mantivesse em números satisfatórios se o veículo continuasse a ser fabricado, mas aí já estamos falando de futurologia e não é possível fazer essa afirmação. O importante é que o mercado reagiu positivamente à redução do preço, ainda que o ano fosse 2011, quando a derrocada das peruas já parecia iminente. Além disso, não se pode afirmar que o crescimento das vendas da Mégane GT tenha sido reflexo do crescimento total do mercado de um ano para outro, visto que de 2010 para 2011 o crescimento total de automóveis emplacados foi de apenas 2% diante de incríveis 243% da Mégane GT.

Voltemos agora ao presente. Os SUVs realmente mataram as peruas médias e grandes. Pelo mesmo preço, a grande maioria dos consumidores prefere levar para casa um SUV em detrimento de uma perua. Mas os SUVs definitivamente não mataram as peruas pequenas. Os SUVs pequenos não substituem as peruas pequenas, não só em questão de atributos técnicos e de espaço, mas pelo simples fato de que estão posicionados em um patamar de preços superior. Um Renault Duster custa mais que um Logan. Uma perua Logan MCV, se custasse o mesmo que um Logan, estaria em um segmento inferior. O consumidor de peruas pequenas não tem mais opções disponíveis, e não se pode afirmar que esse consumidor não exista mais, desde que o preço das peruas não fosse exageradamente alto. Estão órfãos os donos de restaurantes, de comércios, de pequenas indústrias ou qualquer um que precise de um veículo que tenha preço acessível, possa ser usado para carregar mercadorias e também transportar a família. Parte desses consumidores acaba adquirindo um sedan, e curiosamente os sedans nunca tiveram um descolamento de preços tão grande em relação aos hatches como ocorreu com as peruas. O sedan não é um substituto perfeito das peruas, pois a pequena abertura do porta-malas, bem como a limitada altura interna, impedem que se leve cargas volumosas. Também não será surpresa se o preço dos sedans iniciar trajetória semelhante à das peruas, sofrendo grande aumento até chegar ao ponto de inviabilizar sua compra, por mais que se deseje o veículo. Empresas manipulam o mercado de maneira a vender seus produtos que sejam mais rentáveis, é parte do jogo.

lada kalina sw
Quando foi a última vez que você viu uma propaganda de perua no Brasil? Na foto, a Lada Kalina SW

 

dacia logan mcv
Dacia Logan MCV

O outro lado

Fábricas de automóveis são empresas comerciais, cujo objetivo de sua existência é o retorno financeiro. Fabricar carros desejáveis ao consumidor é um meio para atingir esse objetivo, e não um fim. Os custos de desenvolvimento de um novo modelo não são baixos, e devem ser diluídos ao longo do período de vida estimado de forma que se paguem até determinado prazo, e após isso as vendas passem a gerar lucro. Mesmo que se trate apenas de uma derivação de carroceria, no caso uma perua derivada de um hatch ou sedan, a fábrica faz um cálculo de viabilidade financeira e, mais que isso, os responsáveis pelo projeto devem convencer os mais diversos setores, do comercial ao financeiro, da engenharia a compras de que aquele veículo é viável. Não é um processo fácil, quem trabalha ou conhece grandes empresas sabe disso. Por isso quando se trata da briga entre peruas médias e SUVs pequenos, a conta pende favoravelmente para os últimos. A Golf Variant é um veículo do segmento C, com um determinado refinamento de projeto e custo de construção. O T-Cross é um veículo do segmento B, derivado do Polo, com refinamento e custos inferiores. Como eram tabelados em preços próximos, é fácil deduzir que a margem obtida com a venda de um T-Cross era maior que da Golf Variant. (Um adendo: por esse mesmo motivo estão desaparecendo os modelos médios do nosso mercado, como o Focus e o próprio Golf). Esse é um dos objetivos dos departamentos de marketing, impulsionar a venda dos produtos que tragam maior retorno, e o investimento em propaganda de SUVs nos últimos anos tem sido enorme, com resultados evidentes.

Atributos técnicos

É fato conhecido a melhor dinâmica geral e dirigibilidade dos veículos mais baixos. Mas o que a realidade mostra, e as fábricas fazem pesquisas para detectar isso, esses não parecem ser os atributos principais para a decisão de compra de um veículo de faixa de preço intermediária. É muito comum em discussões sobre o tema, ler ou ouvir opiniões do tipo “com o asfalto que temos no Brasil, um veículo mais alto é muito melhor”. E não está errado, de fato um vão livre maior ajuda a enfrentar alguns obstáculos de nossa péssima malha viária, ao custo de alguma perda em dinâmica veicular. Por outro lado, altura em relação ao solo não significa que a suspensão seja mais resistente: a resistência da suspensão está mais relacionada aos seus aspectos construtivos e qualidade dos componentes utilizados, de modo que existem carros baixos com suspensão muito resistente, ao passo que há SUVs com suspensão frágil. Além disso até meados dos anos 2000, quando os SUVs ainda não imperavam, a maioria das pessoas dirigia veículos baixos e as condições do pavimento não eram melhores que hoje, e todos sobreviviam. Os Chrysler Stratus e Sebring, por exemplo, tinham vão livre do solo de apenas 12 cm em algumas versões, e realmente eram pouco adequados para nossas ruas. Por outro lado um Sandero tem vão livre de 15 cm, adequado ao uso comum e até mesmo para um fora de estrada leve, seja aqui ou na Romênia, de modo que a altura de 18,5 cm do Stepway chega a ser um exagero para um carro que não é dotado de tração 4×4.

dodge chrysler stratus
O Chrysler/Dodge Stratus realmente era muito baixo e sofria no asfalto (ou a falta dele) brasileiro.
renault sandero
Já o Sandero tem altura do solo adequada para a maioria das condições.

 

Se a necessidade do consumidor realmente fosse altura do solo e capacidade fora da estrada, a indústria já tinha uma solução. A Palio Weekend foi a precursora no Brasil dos carros comuns com estilo offroad. Mas para além do estilo ela tinha maior altura do solo, pneus de uso misto e até diferencial autoblocante. Nos mercados do norte europeu como a Suécia e a Alemanha, onde as peruas têm grande apreço do consumidor, existem versões aventureiras que suprem as necessidades de altura, com rodas maiores e alguma capacidade fora de estrada. O que ocorreu na verdade foi um movimento por parte dos fabricantes de direcionamento do mercado para veículos com maior rentabilidade.

Conclusões

As peruas dos segmentos médio e grande realmente foram substituídas pelos SUVs, não tanto por atributos técnicos, mas por questões subjetivas ligadas à imagem do dono projetada pelo veículo. Além disso não se pode desconsiderar o poder de decisão cada vez maior das mulheres na compra de veículos, e elas tendem a preferir modelos com posição de dirigir mais alta. Nesses segmentos de certo modo os SUVs suprem a necessidade por espaço interno e de bagagem, ao custo de maior consumo de combustível, maiores custos de manutenção com pneus e freios por exemplo, e uma dirigibilidade não tão refinada quanto a de um veículo mais baixo. As peruas pequenas entretanto não têm substituto. Quem precisa de um veículo desse tipo compra um sedan, um hatch ou qualquer outro modelo que não atenderá plenamente as necessidades de espaço de bagagem e capacidade de acesso à parte traseira. Elas acabaram sofrendo um processo de morte lenta por parte dos fabricantes, que lhes foram aplicando dois venenos: o aumento desproporcional de preços dentro do segmento, e a falta de atualização estética, que tornou a Weekend e a Spacefox pouco atrativas.

jeep renegade
Qual a porcentagem de consumidores que faz isso?

 

Atributos técnicos como qualidade de construção, refinamento da direção ou capacidade de aceleração lateral influenciam apenas uns poucos compradores mais entusiastas. A grande maioria compra carros pela estética, pelo equipamento multimídia, pela imagem que o carro projetará para os outros, mas atributos técnicos normalmente não são os mais relevantes, desde que o carro não seja imprestável, claro. Sendo assim, os esforços de marketing dos fabricantes foram muito produtivos e realmente conseguiram alterar o mercado, de modo que a maior parte dos consumidores vê mais valor agregado em um SUV pequeno do que em uma perua média, ainda que esta última pertença a um segmento superior e tenha maior refinamento técnico.

A pergunta final: quem matou as peruas? Não foi o consumidor, foram os próprios fabricantes, sem dúvida. Os SUVs pequenos se mostraram um verdadeiro ovo de colombo, pois são carros de um segmento inferior que podem ser vendidos a preços de um segmento acima, trazendo maior margem. Esse processo não foi automático, ele ocorreu às custas de muito esforço de marketing e do aumento constante dos preços das peruas, até que se tornassem inviáveis perante os olhos do consumidor.

E finalmente, o paradoxo de Tostines aplicado às peruas: será que elas ficaram caras e sumiram do mercado porque ninguém mais quer comprá-las, ou será que ninguém mais quer comprá-las porque ficaram caras e sumiram do mercado?

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